A venda e compra de um bem imóvel exige das partes envolvidas a adoção de uma série de cautelas, bem como imputa a compradores e vendedores o dever de analisar, preventivamente, as condições do negócio jurídico, a fim de que sejam evitados transtornos futuros e inúmeros ônus às partes.
Para fins de ilustração da situação aventada no título do presente artigo, incumbe descrever uma situação muito singela e corriqueira que, inicialmente, aparenta não implicar grandes problemas, mas, se focada em outra perspectiva, pode se tornar causa de um emaranhado de transtornos e, especialmente, prejuízos financeiros.
CASO PRÁTICO: VENDA E COMPRA DE UM IMÓVEL REALIZADA COM CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA EM QUE SE DEU A INEXECUÇÃO DAS OBRIGAÇÕES CONTRAÍDAS, POR PARTE DO COMPRADOR. A VENDA E COMPRA SE ENCONTRA DEVIDAMENTE REGISTRADA NA SERVENTIA IMOBILIÁRIA COMPETENTE (CARTÓRIO) E O ATO DE REGISTRO CONTÉM A MENÇÃO À CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA, POR SER ESSÊNCIA DO CONTRATO. AS PARTES, DIANTE DO INADIMPLEMENTO, PRETENDIAM CANCELAR O REGISTRO DA VENDA E COMPRA POR MEIO DE REQUERIMENTO ASSINADO POR VENDEDOR E COMPRADOR, COM FIRMAS RECONHECIDAS. O REGISTRO IMOBILIÁRIO NEGOU A AVERBAÇÃO DO CANCELAMENTO DA VENDA E COMPRA POR MERO REQUERIMENTO DOS INTERESSADOS. NA SEQUÊNCIA, AS PARTES APRESENTARAM ESCRITURA DE DISTRATO, SEM, CONTUDO, JUNTAR A GUIA COMPROBATÓRIA DO PAGAMENTO OU CERTIDÃO DA INEXIGIBILIDADE DO IMPOSTO DE TRANSMISSÃO INTER VIVOS – ITBI. O QUE FAZER DIANTE DESTAS HIPÓTESES? TAL SITUAÇÃO PODERIA SER EVITADA COM A ADOÇÃO DE OUTRAS PROVIDÊNCIAS?
Pois bem, suponha-se que um imóvel foi vendido e que vendedores e compradores estabeleceram na venda e compra, ao firmarem o instrumento particular ou a escritura pública, a cláusula resolutiva expressa.
A cláusula resolutiva poder ser expressa ou tácita. Para fins de fundamentação legal, dispõem os artigos 474 e 475 do Código Civil: “... Art. 474. A cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial... Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos...”.
Isto é, vendido um imóvel com cláusula resolutiva, se uma das partes contratantes não cumprir com o acordado, o prejudicado pelo inadimplemento poderá pedir a resolução do contrato ou exigir o seu cumprimento. Em qualquer caso, contudo, haverá indenização por perdas e danos.
Nas palavras de Wander Garcia: “... a) se houver cláusula resolutiva expressa, ou seja, previsão no próprio contrato de que a inexecução deste gerará sua extinção, a resolução opera de pleno direito, ficando o contrato extinto; o credor que ingressar com ação judicial entrará apenas com uma ação declaratória, fazendo com que a sentença tenha efeitos “ex tunc”. A lei protege o devedor em alguns contratos, estabelecendo que, mesmo existindo essa cláusula, ele tem o direito de ser notificado para purgar a mora (fazer o pagamento atrasado) no prazo estabelecido na lei. b) se não houver cláusula resolutiva expressa, a lei estabelece a chamada “cláusula resolutiva tácita”, disposição que está implícita em todo contrato, e que estabelece que o seu descumprimento permite que a outra pessoa possa pedir a resolução do contrato. Neste caso, a resolução dependerá de interpelação judicial para produzir efeitos, ou seja, ela não decorre de pleno direito. Repare que não basta mera interpelação extrajudicial. Os efeitos da sentença judicial serão “ex nunc”...”. (Wander Garcia [coordenador], Super Revisão concursos jurídicos: doutrina completa. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 4ª Edição, 2016, p.52).
O caso prático apresenta, exatamente, o implemento da cláusula resolutiva ao negócio, uma vez que, descumpridas algumas condições da venda e compra objeto de registro, cabe à parte lesada pleitear a resolução do contrato ou exigir o seu cumprimento, inclusive, solicitar o cancelamento da venda e compra.
Todavia, a averbação do cancelamento da venda e compra, respeitados alguns posicionamentos minoritários em sentido diverso, deverá ser realizada por meio de decisão judicial expressa que a autorize. Para o desfazimento do negócio e cancelamento do registro são necessárias a intervenção judicial e respectiva sentença.
Dessa forma, presente a cláusula resolutiva expressa, e não se verificando o pagamento, por exemplo, o negócio considera-se desfeito de pleno direito. Mas, isso não significa que é possível o requerimento do cancelamento de registro direto ao Oficial de Registro de Imóveis, com mero fundamento no artigo 250, II da Lei nº 6.015/73. Na verdade, para o cancelamento da venda e compra, é imprescindível a sentença judicial que reconheça que o negócio não foi cumprido e deva ser desfeito.
Isso segue uma lógica simples e plausível, já que apenas no âmbito judicial será possível verificar questões atinentes à mora e culpa, onerosidade excessiva, eventual adimplemento substancial, devolução de valores, exceção de contrato não cumprido, vícios de notificação, lesão a terceiros ou credores, incidência de juros, renúncia, caracterização da boa-fé objetiva, dentre outros temas, os quais não estão inseridos nas atribuições e competências do Oficial de Registro, ao qual cabe apenas qualificar formalmente os títulos que lhe são apresentados.
O Registro de Imóveis não se imiscui em matérias de mérito dos títulos, sejam eles judiciais ou extrajudiciais, isto é, não é feita a qualificação em relação ao aspecto intrínseco dos documentos, não se valora eventuais invalidades, não se questiona a decisão judicial ou a vontade das partes. A qualificação é formal, de acordo com os requisitos previstos em lei, princípios e nas normas de serviço extrajudicial das respectivas Corregedorias.
Nas palavras de Walter Cruz Swensson, Renato Swensson Neto e Alessandra Seino Granja Swensson, “... Também é possível que os que tenham participado do ato registral, se capazes, pleiteiem seu cancelamento. Mas, existem exceções. Nem todos os registros ou averbações decorrentes de atos bilaterais de manifestação de vontade podem ser cancelados a requerimento dos que nele intervieram. Também não são passíveis de cancelamento, nesta forma, os registros dos atos translativos de direitos imobiliários...”. (Lei de Registros Públicos Anotada. São Paulo, SP: Editora Juarez, 4ª Edição, 2006, p.637).
E não destoa José Osório de Azevedo Júnior: “...Haja ou não cláusula resolutiva expressa, impõe-se a manifestação judicial para resolução do contrato...”. (Compromisso de Compra e Venda. São Paulo, SP: Malheiros, 2ª Edição, 1983, p.16).
Assim sendo, agir de maneira diversa, seria o mesmo que afrontar os princípios constitucionais de ampla defesa, contraditório e inafastabilidade da jurisdição, sem falar em outros dispositivos legais. A serventia imobiliária que qualificou negativamente o requerimento firmado pelas partes, para averbação do cancelamento da venda e compra, procedeu de forma correta, já que este meio é inviável.
Para solução do caso, bastava então apresentar o mandado judicial determinando o cancelamento da venda e compra em epígrafe.
DISTRATO: Pois bem, ultrapassada esta questão, cabe realizar uma análise acerca da hipótese atinente ao distrato.
O distrato do negócio jurídico, que é forma de extinção contratual, é regulado pela legislação civil em vigor, em seu artigo 472. O seu ingresso perante o Registro de Imóveis é admitido.
Ademais, vale dizer, o distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato, isto é, sujeita-se aos mesmos requisitos e, no caso da venda e compra, também demanda o pagamento do imposto de transmissão.
Maria do Carmo de Rezende Campos Couto abordou este tema na obra “Coleção Cadernos IRIB - Compra e Venda - Volume 1”, publicada pelo IRIB em 2012: “... Distrato é um contrato que extingue outro, cujos efeitos não se exauriram e cujo prazo de vigência não expirou. Por isso, em princípio, entende-se inviável o distrato de escritura de compra e venda pura, perfeita e exaurida com o seu registro. O distrato é possível apenas se houver, no título original, a imposição de cláusula resolutiva expressa. Fioranelli aponta pela possibilidade de rescisão do contrato de compra e venda, mesmo que registrado, desde que haja a devolução do preço e pagamento do ITBI...”. (página 37).
Dessa maneira, para a hipótese em comento, é possível realizar o distrato, mas, se feita uma análise mais detida, talvez tal opção não seria a mais acertada, uma vez que, para viabilizar tal ato, mister se faz a lavratura de uma escritura pública, a depender da situação do valor do negócio (artigo 108 do Código Civil), bem como o pagamento de imposto de transmissão (ITBI) ou juntada da certidão de inexigibilidade.
Se os interessados tivessem pleiteado em juízo o cancelamento da venda e compra, já bastaria o mandado judicial para proceder-se à averbação do cancelamento perante o registro de imóveis. O mandado judicial já é suficiente, possui a chancela de uma decisão judicial. Aos interessados, restaria encaminharem o mandado à serventia imobiliária e efetuarem o pagamento do valor devido a título de custas e emolumentos, os quais, pela essência do ato, corresponderia a uma averbação com valor (imprescindível verificar a tabela de atos e custas de cada estado). Obviamente, apenas a título de ponderação, esta hipótese dependeria da apreciação judicial que, talvez, não seria obtida de imediato pelas partes. Mas isso também depende de como se faz o pedido, de como a questão é levada.
Na hipótese da lavratura da escritura de distrato, contudo, verifica-se que restaria aos interessados arcarem com alguns ônus, não obstante ter-se uma solução mais rápida para a questão, quais sejam: a) o pagamento do imposto de transmissão (ITBI), b) o pagamento das custas e emolumentos ao tabelião de notas que lavrou a escritura pública de distrato, nas hipóteses em que a lei o determina (artigo 108 do Código Civil), ou o pagamento ao profissional habilitado que elaborou o instrumento particular de distrato, e c) o pagamento das custas e emolumentos ao registrador de imóveis competente, que corresponderá a um ato de registro com valor declarado, mais oneroso que o ato de averbação com valor (imprescindível verificar a tabela de atos e custas de cada estado).
De todo o exposto, a questão mais tormentosa em relação ao distrato cinge-se à exigência do pagamento do imposto de transmissão. Entretanto, a melhor doutrina, assim como a jurisprudência, tem se manifestado no sentido de que é exigível o pagamento do tributo (ITBI) nestes casos. Na verdade, são exigidos os mesmos requisitos de validade e eficácia da venda e compra, inclusive, no que diz respeito às obrigações tributárias.
Considerando que o fato gerador do ITBI se perfectibiliza com a transmissão do imóvel, a qual depende do registro do título translativo, e que o distrato nada mais é que uma nova transmissão, faz-se necessário, então, o pagamento do tributo. Aos notários e registradores, cabe o dever de fiscalizar o pagamento dos tributos incidentes por força dos atos que praticam, sob pena de cometerem infração disciplinar (artigo 30, inciso XI, e artigo 31, inciso V da Lei nº 8.935/94 e artigo 289 da Lei nº 6.015/73), razão pela qual deverão exigir o pagamento do ITBI.
Logo, se considerada a opção do distrato, tem-se que essa solução, talvez, não seria a melhor para o caso em epígrafe. A situação deve ser estudada mais amiúde, com cautela e eficácia. A vida dos negócios demanda isso.
ALTERNATIVA: Por fim, uma questão que paira no ar: há outra solução alternativa, viável, rápida e menos custosa para tal situação?
Sim, na verdade, o contrato originário de venda e compra poderia ter sido confeccionado, conjuntamente, com o negócio jurídico da alienação fiduciária, regulada pela Lei nº 9.514/97, considerada como a modalidade de garantia mais utilizada na atualidade.
A alienação fiduciária é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. É sabido que a alienação fiduciária, vista do ângulo do devedor/fiduciante, é um direito real sobre coisa alheia de aquisição, enquanto que sob a ótica do credor/fiduciário possui natureza de direito real de garantia, recebendo a tutela da lei. Ocorrem: o desdobramento da posse, a resolubilidade, a afetação e a cláusula constituti.
Com a evolução da sociedade, a dinâmica dos negócios e a celeridade das relações, a alienação fiduciária ganhou força e passou a ser utilizada em diversos negócios, o que representou um grande avanço, se comparado a outros meios de garantia que já existiam.
A alienação fiduciária provou, nesses quase 20 anos da Lei nº 9.514/97, que é a garantia de maior segurança e, sobretudo, agilidade das relações contratuais, bem como uns dos meios de maior eficácia na facilitação dos eventuais procedimentos de excussão de uma operação inadimplida, haja vista a utilização da via extrajudicial (registros de imóveis).
Portanto, a solução mais acertada, para o caso prático aqui ilustrado, poderia ser a realização de um título de venda e compra com alienação fiduciária do imóvel, obviamente, atendendo às disposições e limitações legais para o caso concreto. Certamente, o desfecho teria sido bem mais eficaz, célere e módico.
A orientação competente e bem estruturada aos envolvidos resolve muitos imbróglios da vida. Não basta apenas conhecer teorias, tecer verdadeiros planos negociais mirabolantes, sem efetividade, é preciso antever as implicações práticas de qualquer estratégia que se pretenda implementar, é preciso pensar além, simular situações que possam ocorrer, estudar, refletir, DIFERENCIAR-SE. O ganho é para todos!
Autor: Isabel Novembre Sangali
Fonte: www.risimplificado.com